Cuba Livre

 

Jeudiel Martinez

Não é estranho que a esquerda diga que os cubanos que protestam são manipulados. A esquerda, seja do primeiro mundo, seja a imunda classe média da esquerda latino-americana, sempre acreditou que conhece países como Cuba e Venezuela melhor do que seu povo: então, eles devem saber mais que os cubanos o que lhes convém; crianças eternas, os cubanos são manipuláveis ​​ao contrário do esquerdista, um modelo de esclarecimento.

O choque é fácil de compreender: para essa esquerda (que nada mais é do que uma província da classe média universitária, com seus privilégios, suas vantagens e seus preconceitos) a convulsão em Cuba faz tremer uma de suas crenças fundamentais.

O Castrismo foi o pioneiro arquitetar uma experiência turístico-cultural em que um estrangeiro com pouco ou nenhum conhecimento do país – ao estilo de Beauvoir e Sartre – pudesse julgar-se um especialista em uma terra que não conhece, em uma vida que não vive, com uma língua que não fala: não se trata de identidade, mas de experiência, e o castrismo, como nenhum outro regime, conseguiu basear a política numa experiência turística e sentimental que extinguiu a experiência dos que vivem, dia após dia, em Cuba: o fato da decadência, da ruína e da ferrugem das cidades cubanas fascinarem a classe média de esquerda mostra toda a diferença entre quem vive em uma casa em ruínas e quem a fotografa. Da ridícula, incrível, infantil, kitsch trova cubana às visitas guiadas e ao esnobismo dos intelectuais, a estabilidade de Cuba, em meio ao bloqueio, esteve associada à criação de um parque temático em que o cubano comum permanece na mesma posição servil dos anfitriões da série Westworld: Não é estranho, portanto, que os esnobes de Nova York, Santiago ou Paris acreditem que alguém hackeou seus andróides!

Portanto, é dever dos cubanos suportar o que ninguém mais suportaria: eles têm que viver em cidades decadentes e enferrujadas, dirigir carros velhos ou se pendurar no busão cheio de gente. Não podem criticar o governo, não podem fundar um sindicato, não podem escolher entre dois partidos distintos em uma eleição, estão condenados a serem fiéis e a obedecerem não só em benefício da nomenklatura que de fato cancelou a revolução para dominar o país, mas em nome da esquerda internacional por que a Brava Ilhota, tal qual a Utopia de Tomas Moro, é o eixo da existência.

Intelectualmente, o papel de Cuba é manter a fé em uma forma de governo que não funciona nem se justifica: até o Vietnã e a China, que mantêm o regime de partido único, se afastaram do stalinismo antigo que Castro misturou tão bem com o militarismo e o caudilhismo latino-americano, um híbrido que arrastou seu fracasso por décadas, incapaz, apesar de todos os esforços, de empreender as complexas reformas que seriam necessárias para se modernizar, iniciou um caminho mais semelhante ao da Coréia do Norte onde a incapacidade de mudar e o apego ao passado servem como guia e bússola.

O castrismo justamente por isso, por ser neoarcaico, desperta a nostalgia da esquerda realmente existente e, ao mesmo tempo, revela seu caráter totalitário: enfim, o que chamamos de “esquerda” não é fruto dos grandes movimentos revolucionários do século passado, mas a herança dos partidos e governos que liquidaram esses movimentos e essas lutas: a esquerda não vem de rebeldes e criadores, mas dos julgamentos de Moscou, burocracias partidárias, o Gulag, seitas fanáticas, intelectuais petulantes, os manuais e os dirigentes amados: sua religião é o governo absoluto personificado em um líder indiscutível, além da necessidade de mostrar que representa alguém ou serve a outra coisa que não a seus próprios fins. A simpatia por Putin e pela teocracia iraniana já mostra o caráter de esquerda, mas é preciso lembrar que, no “DNA” dessa cultura está o castrismo: o mais raro marxismo do mundo – que não fala do proletariado ou da classe trabalhadora mas de “povo” nos mesmos termos de Franco e Mussolini – que contrabandeiam as ideias autoritárias mais tradicionais sob o pretexto de serem “antiimperialistas”: há militarismo mais agressivo, mais opressor e orwelliano do que o “comandantismo” cubano que reduz todos cubanos a soldados obedientes em uma guerra eterna? O falanstério tropical cubano, com suas festas, turistas e intelectuais bajuladores, sempre foi a imagem mais sedutora do totalitarismo.

Embora fundamentalmente emocional, o apego a Cuba se justifica no bloqueio (o que não explica que as liberdades fundamentais dos cubanos tenham sido usurpadas), no sistema médico (altamente mitificado e cujo fracasso diante de Covid parece ser o estopim dos protestos) e essencialmente na ideia de que há uma estranha singularidade que justifica que os cubanos não possam ter liberdades que a esquerda elitista de Paris, Nova York ou Buenos Aires não aceitaria perder.

Para a esquerda – a maioria, a predominante, aquela que dá o tom, não aquelas lascas de dissidência pelas quais os ingênuos, mas bem-intencionados querem acreditar na “diversidade” – os cubanos são figurantes, objetos sexuais, objetos estéticos, empregados, cuja função é trazer-lhes mojitos e dizer “pátria ou morte, patroncito“, androides de estimação condenados a viver uma vida que nunca viveriam. Mas na verdade os cubanos são gente como nós: têm o direito de decidir qual o partido os governa (porque mesmo quando as opções são miseráveis, o fato de escolher afirma que ninguém é dono do Estado e que o cidadão comum tem a última palavra), têm o direito de formar sindicato e fazer greve, de protestar na rua, de escrever nos jornais, de denunciar o estado no tribunal, de enfrentar a polícia sem ser morto, de viver em cidades limpas com serviços públicos decentes, porque tudo isso, as liberdades, (que a esquerda chama de burguesas mas não aceitaria perder) definem a nossa dignidade e a nossa qualidade de vida e sem elas não é possível pensar em liberdades mais elevadas ou mais profundas: a democracia não se expressa no parlamentarismo e na tagarelice de merda, que a esquerda tanto ama, tampouco se expressa inteiramente no voto, que simplesmente limita o poder dos partidos, mas na capacidade de governar quem nos governa impondo uma direção e um horizonte.

E assim, os cubanos não fazem nada diferente do que faziam os colombianos há poucos dias ou os equatorianos e os chilenos há poucos meses: se a democracia ainda significa alguma coisa, é aquela capacidade constituinte de abalar os poderes instituídos, de criar a partir do comum, um novo horizonte de vida. Esqueçamos as ilusões de que Cuba é menos capitalista ou menos desigual que qualquer outro país do continente: Fidel não bebia cachaça e pescava marlim com García Márquez -e algum outro puxa-saco profissional- enquanto os cubanos sofriam o Período Especial?

Deixemos de pensar que a miserável política estadunidense justifica os Atos de Repúdio e os campos de concentração: todos sabem que um regime como o de Cuba não se justifica de forma alguma e os cubanos não têm que suportá-lo: não sabemos o que vai acontecer no futuro, e não há razão para acreditar que o castrismo cairá de um dia para o outro, mas o que aconteceu nestes dias é irreversível e devemos nos alegrar por isso: não há liberdade que reivindiquemos para nós a que os cubanos não têm direito e não há justificativa para quem os roubou.

 

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