O Making da Metrópole

PREFÁCIO

Clarissa Naback

Alexandre Mendes

 

A publicação do livro O Making da Metrópole. Rios, Ritmos e Algoritmos nos conduz a uma trama instigante e oportuna. Primeiro, porque nos coloca diante de um balanço de mais de três décadas de globalização desde a queda do muro de Berlim e, consequentemente, a posição de destaque da metrópole nesse campo de transformações. Segundo, porque nos apresenta, sem cerimônia, as linhas políticas, econômicas, sociais e culturais que, tanto se consolidaram como paradigmas, quanto se tornaram tendências, isto é, devires. Por fim, todo esse panorama não escapa daquilo que está diante de nós, mas que se tornou difícil de encarar: a experiência metropolitana do Rio de Janeiro pós-ressaca dos grandes projetos urbanos, implementados durante a governança de esquerda e promovidos na calda dos megaeventos esportivos (Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016) e do ciclo dos commodities (2000-2014).

Não estamos diante de um estudo de caso, mas sim de uma análise latitudinal das metrópoles em movimento, o que confere um caráter veloz à leitura, mas não menos provocador. Não há a pretensão de desnovelar as tramas das cidades globais ou de denunciar hierarquias ou desigualdades. Ao contrário, os autores se ancoram exatamente entre os “nós” e as interseções que evidenciam as conexões e enlaces entre os lugares, como também os seus paradoxos. Destacamos aqui o primeiro deles, a saber, a passagem das cidades industriais para as cidades pós-modernas, encaradas através dos exemplos de Chicago e Los Angeles. Da forma auréolaire e concêntrica – então desenhada pela ecologia urbana da Escola de Chicago – as cidades passam a funcionar de forma reticular e desterritorializada, criando uma colcha de retalho de lugares e situações descontextualizas, conforme descrição de Rem Koolhaas em “Cidade Genérica”. Tal mudança morfológica acompanha, não só as transformações no conjunto das ideias (ideologias), mas também o campo de produção, de uma só vez abstrato e material, que configura o digital turn. Estamos, assim, diante da constituição de um capitalismo cognitivo operado em plataformas, algoritmos e pela big data, por onde o trabalho e as transações comerciais, financeiras e até afetivas passam a ocorrer.

Como os autores apontam, a descentralização dos espaços industriais e tudo aquilo que neles orbitam provocaram, de um lado, o esvaziamento de certos lugares e, de outro, liberaram novas formas de apropriação do urbano, que notamos com mais clareza nas zonas portuárias, entrelaçadas entre funções logísticas e fabricações histórico-culturais. O projeto de revitalização da região portuária do Rio de Janeiro, analisados em detalhes por Szaniecki e Cocco, constitui, no livro, o exemplo mais luminoso dessa transformação. Na mesma medida em que os elementos intangíveis ligados ao conhecimento e ao afeto se tornam cada vez mais centrais no campo do trabalho e da produção, dentro de uma economia em rede, é pela cultura que são criadas as novas fórmulas de empreendimento (público-privado) e de soluções urbanas.

E aqui passamos a enfrentar um segundo “nó”. Do abandono das velhas utopias do planejamento funcionalista, ascende a setorização e proliferação de projetos criativos, culturais e… monumentais. Se a pretensão demiúrgica do urbanismo desaparece, a megalomania não. Os megaeventos esportivos sediados no Rio de Janeiro mobilizarem um montante faraônico de investimentos públicos e lançaram para frente seus resultados, produzindo não só especulações desenfreadas, como progressos ficcionais, hoje mais bem compreendidos como fracassos. A mobilização do futuro (o tão prometido “legado”) empurrou para fora uma série de circuitos sociais e culturais, que geravam uma economia informal/flexível, mas também produtiva; base de políticas como os Pontos de Cultura, abandonadas tanto quanto os programas de urbanização de favelas, dando lugar novamente as práticas de remoção.

O desafio, contudo, permanece em não se satisfazer com a simples denúncia das contradições, nem com uma crítica nostálgica presa ao passado, isto é, à disciplina moderna. Não se trata de lutar contra um cultural turn, até porque este não é apenas retórico: “a importância da cultura na economia pós-industrial foi reconhecida a nível global”, afirmam os autores. É nesse sentido que a própria ideia de “revolução urbana” de Henri Lefebvre já indicava, mesmo que de maneira incipiente, que as metrópoles se tornaram em si máquinas produtivas, proliferantes de sentidos, signos, traçados e economia. Nesse deslocamento, elas romperam definitivamente com as linhas geométricas dos planos urbanísticos, colocando desafios à máquina do Estado. Szaniecki e Cocco escapam, assim, das armadilhas do enunciado do desenvolvimento, que nos coloca permanentemente em uma sala de espera do “progresso”, e propõem pensar a metrópole através dos processos e da construção, de um desing urbano em movimento (redesing) ou, em outros termos, de um making que já caracteriza a nossa condição urbana.

A fuga do plano é a inversão dos termos da soberania (lei), pelos termos sociais (economia). Seguimos aqui para o terceiro nó: a relação entre tecnologia e natureza, entre artefatos e ecologia. Os desdobramentos das redes, seu impacto sobre o âmbito da cultura e da organização do trabalho, é o ponto mais original do livro. Nele, são delineadas as atuais condições metropolitanas através da relação constante entre as condições territoriais (patchwork) e as novas teias e relações tecidas nas plataformas digitais (network). Se a invenção da internet e do computador doméstico colocou um novo horizonte comunicacional na virada do século, hoje percebemos que os dispositivos se tornam cada vez mais “orgânicos”, configurando os ciborgues, prenunciados por Donna Haraway. Isso não transforma apenas a nossa forma de se relacionar, mas de constituir lugares e, por assim dizer, de agir. Nosso trabalho não se concentra mais em um mesmo lugar – a velha fábrica ou o velho escritório – mas se esparrama por toda a hiper-malha social.

É nesse sentido que os autores nos provocam a pensar um ecological turn. Não naquele sentido da Escola de Chicago, que buscou compreender a cidade a partir de um paralelismo funcionalista com a botânica, nem mesmo de um green washing ou realismo cínico pós-moderno, mas de uma metrópole que já é uma fazer processual e um híbrido entre o analógico e o digital (entre a colmeia, a fábrica do mel, e a polinização, a ecologia das redes). É nessa direção que chegamos ao nosso último nó: a dualidade entre o sul e o norte. A abordagem longitudinal dos problemas “do sul” não parte aqui de um antagonismo rígido, pelo qual as transformações macroeconômicas aparecem como uma rota de direção única, do centro à periferia. Ao contrário, os movimentos de flexibilização do trabalho e expansão do setor informal são observados nos países ditos “desenvolvidos”, levando muitos teóricos a cogitar uma “brasilinização” do mundo. No entanto, o que existe de singular nas favelas e nas periferias do terceiro mundo não é a marca do repisado dualismo entre legal e ilegal, mas a renovação contínua de uma zona cinzenta e complicada a partir da qual ocorre a expropriação e a precarização dos pobres, remontando às políticas clientelistas do século XX. É, justamente, neste espaço móvel de bicos (trabalho precário) e bicas (populismo) que os autores enxergam um bloqueio persistente da nossa democracia, mas também encontram o potencial produtivo dos territórios e de mobilização do comum que emerge das redes e das ruas.

A publicação está disponível no site da Rio Books.

 

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