When the future leaks out: Sobre o legado e a atualidade de W.S. Burroughs

 

Texto de Jeudiel Martinez

 

Today men’s nerves surround us; they have gone outside as electrical environment. The human nervous system itself can be reprogrammed biologically as readily as any radio network can alter its fare. Burroughs has dedicated Naked Lunch to the first proposition.

Marshall McLuhan

 

 Toda buena novela es una adivinanza del mundo.

 Gabriel García Marquez

Fugindo do Mayflower

Cara, é um milagre mesmo. Não só por já estarmos em 2021 e vivos, mas porque Burroughs ainda não foi cancelado. Talvez o tenham esquecido mesmo. Ou talvez esteja na fila, mas a fila é bem longa. Os tiras já pegaram Lovecraft o que eu acho que é overkill, a vida desse cara foi um castigo mesmo e o coitado está morto: não podemos ler In The Mountains of Madness e ao mesmo tempo concordar que era também um escroto? E, mesmo assim, a cultura tá cheia dele ou de seus tentáculos. Quando a Haraway disse que seu “Chthuluceno” não tem nada a ver com Cthulhu, só me posso perguntar se seu problema é uma overdose de esnobismo ou simplesmente não quer que seus amigos progressistas pensem mal dela.

Logo, quase conseguiram tirar os nus de um museu inglês porque “objetificavam” a mulher: na realidade foi um experimento (ou uma advertência): a censura não se cria nem destrói só se transforma. Enquanto isso, alguma militante feminista desnuda seus seios para escandalizar a “sociedade patriarcal” (??) que se nutre do Onlyfans e Pornhub. É difícil seguir a lógica: porque os nus nas obras de arte não podem também escandalizar a “sociedade patriarcal”? Porque a militante não objetifica a si mesma?

Eu sei que o Gauguin está já na mira e a operação para cancelar o Maradona, embora não tenha dado certo, foi bem forte. A lógica dos tiras temos que admitir, é impecável: Lovecraft era um racista, Gauguin um turista sexual e o Maradona, o que não seria?? Os que vêem estátuas gregas objetificam a mulher e aqueles com um parceiro mais jovem são pedófilos disfarçados, embora o parceiro tenha mais de 30 anos. Vocês conhecem já a rotina: “o autor é inseparável da obra”, “check your privilege”… “a ver machirulo, contra la pared, déjame ver los bolsillos”. Os suspeitos habituais são aqueles “brancos, cis, héteros”, mas enfrentemos os fatos: qualquer um pode ser culpável. Eu estaria exagerando? Então você não viu aquele vídeo numa universidade americana onde uma moça negra empurra, encurrala e pede explicações[1] a um garoto branco pelo crime de usar dreadlocks?. Isso sem falar das ondas de acusações anônimas que causaram suicídios no México[2] e na Argentina[3].

E não, eu não sou de direita, não tenho nada contra o Black Lives Matter ou os direitos das mulheres a serem gerentes gerais da galáxia ou caminhar pela rua. Burroughs também não. Mas ele sabia, e eu sei que esses identitaristas são Liquefacionários, que esses politicamente corretos são agentes dos Emissores, que já estão coligados há tempo – desde os 80s pelo menos – “nova força solta no mundo como uma doença rasteira, que se espalha, que se abate”. Não é surpresa que o moralismo que saiu pela porta dos fundos volta orgulhoso pela principal falando não em nome de Deus, mas das vítimas: formas corretas de falar, complexas gírias burocráticas, rígidos algoritmos neurolingüísticos codificados por brandos jogadores de xadrez paranoicos, the mob becoming police as the mob always wanted. E o Burroughs era branco, “cis”, e quase “hétero”, na realidade até foi feminicida (embora acidental), turista sexual e como pai deixou muito a desejar. Quase como Maradona, mas nem tanto. Eles vão procurá-lo – temo que sim – inclusive lá nas Terras Ocidentais. Lá na Interzona.

O fato de que seja associado com a contracultura e a rebeldia – e que fosse homossexual –- explica talvez que até agora ele conseguiu deslizar-se através das fendas. Talvez  ele esteja um pouco esquecido. Mas os homossexuais já não são os “aliades” que eram antes, mas outros agentes do patriarcado explorando os ventres das mulheres… E o Burroughs com suas relações com moços, suas violentas vinhetas pornográficas, seu gosto pelas armas… Eu sei que será acusado até de criar o Maradona num laboratório em Marrocos.

Já as lendas menores da velha contracultura como Crumb e o Howard Chaykin experimentaram, com surpresa, o chicote da nova polícia, especialmente Chaykin que, ao apresentar em sua série de quadrinhos Divided States of Histeria cenas de violência contra um transexual e um linchamento de um indiano achou que estava fazendo uma denúncia, mas logo viu que os tempos tinham mudado: “Achei o trabalho incrivelmente desagradável (…) moralmente duvidoso, na melhor das hipóteses, e abominável, na pior das hipóteses”[4] .

Isso não é muito diferente daquilo que, back in the day, foi dito sobre o Almoço Nu que, evidentemente, é – além de muitas outras coisas – pornográfico e usou suas vinhetas escritas com a mesma intenção que o Chaikin usou as desenhadas. Em Boston, em 1960, foi proibido por apresentar cenas de assassinato de crianças, pedofilia e, em geral, obscenidades. Não esqueçamos que os colonos do Mayflower eram puritanos e fugiram procurando a liberdade de exercer uma religião com uma moral que suga a alegria da vida. . E assim, exatamente 313 anos depois que os puritanos do Mayflower fugissem para a América, perseguido por uma série de ações questionáveis que o forçaram a fuga, William Seward Burroughs, até então um mauricinho questionável e repreensível, fez outra fuga ao exótico Oriente procurando – por que negar? – moços e drogas, numa viagem que foi também uma fuga do Mayflower em busca de liberdade. E dessa viagem nasceu, como vocês conhecem, um dos livros mais extraordinários do século XX, um que – fora dos slogans e da publicidade das editoras – pode ser chamado de revolucionário.

[…]

Para o artigo integral, acesse a página da Lugar Comum no portal de periódicos da UFRJ.

[1] Mike Moffitt . White SF State student with dreads accused of ‘cultural appropriation’. SFGATE

Março 29, 2016. https://www.sfgate.com/bayarea/article/White-SF-St-student-with-dreads-accused-of-7215259.php

[2] Andrea Amaya Tras el suicidio de Armando Vega Gil, el movimiento #MeTooMúsicosMexicanos no publicará más acusaciones Abril 05 2019 – https://www.france24.com/es/20190404-armando-vega-gil-abuso-sexual

[3] Agencia Telam. La madre del joven de Bariloche que se suicidó dijo que se retira de las redes para hacer su duelo.  https://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/madre-del-joven-de-bariloche-que-se-suicido-dijo-que-se-retira-de-redes-para-hacer-su-due

[4]Joe Glass. “Howard Chaykin Responds To Controversy”.Bleedingcoolhttps://bleedingcool.com/comics/howard-chaykin-responds-controversy/#:~:text=The%20latter%20controversy%2C%20the%20cover,between%20themselves%20and%20Howard%20Chaykin%2C

 

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